por Sulena Pinto Bandeira
A primeira vez que o vi foi entrando em sala de aula para ministrar a disciplina. sobre a qual tinha total domínio: História do Livro e das Bibliotecas. Elegante, em sua roupa bem talhada, cheiroso, simples e imponente. Com voz grave e sotaque difícil de identificar, pelo menos a princípio, começou a explanar como seria. desenvolvido o programa naquele semestre.
A turma era irrequieta, bagunceira mesmo, como se fosse formada não por universitários, mas por adolescentes ginasianos, embora já. houvesse ultrapassado aquele momento de vida.
Com formação europeia, disciplinada e séria, fizera seus estudos básicos na França e na Suíça e a turma deve tê-lo, no mínimo surpreendido. Mas ele também nos surpreendeu com seus métodos didáticos. Não permitia atrasos, mas nos deixava entrar depois do início da aula. Chegando a bater a porta em nossa cara, e ficava verdadeiramente irritado quando percebia que não tínhamos o conhecimento mínimo para quem esta ali. Tolerava, aos 72 anos de idade, as brincadeiras infantis dos alunos, mas não o desconhecimento, a ignorância e, principalmente, a falta de cultura. Isso ficou evidenciado no resultado da primeira prova. Foi uma catástrofe geral. As notas foram baixas, vergonhosas e mexeram com os nossos brios. A reação foi imediata… Começamos a chamá-lo de “Vovô como se fosse ofensa, deboche mesmo, aos métodos entendidos até ali como antiquados e arbitrários.
Mas ele tinha cultura, conhecimento e, sobretudo, charme. Muito Charme. Foi-nos conquistando um a um e o que era para ser ofensa virou carinho, afeto e respeito. Afinal, se como diziam à boca pequena, havia, noutros tempos, conquistado até a famosa dançarina Isadora Duncan, como poderíamos ter escapado do seu encanto?
O mais interessante nisso tudo é que ele incorporou o apelido de uma forma muito afetiva e se sentia nosso avozinho de verdade, enquanto nós assim o sentiam os também. A reciprocidade do afeto foi imediata e duradoura. Tanto que, dali para frente, ele sempre foi homenageado pelas turmas que forma concluindo o curso.
Levou-nos à sua casa para vernos “in loco” sua famosa e bem cuidada coleção de livros raros, dando informações detalhadas sobre cada exemplar. Ali, se evidenciava o cuidado e o amor com que os tratava. Havia um espelho d’água no interior da casa, que amortizada os efeitos negativos do clima seco como o de Brasília sobre o papel, e ensinou-nos, de forma prática e simples, a tratar e amar os livros. Nessa visita, vasculhamos tudo, mexemos em quase todos os seus pertences e fumamos todos os cigarros colocados à nossa disposição em uma cigarreira de prata.
Mostrou-se por inteiro, e descobrimos que, além de um professor excepcional, que nos mostrava a evolução do mundo através dos livros, era também um amigo, de sorriso largo e barulhento e olhar bondosos. E o amamos muito mais.
Aos poucos fomos descobrindo sua vida, era um intelectual, aberto às novas ideias; fora participante da Semana de Arte Modernam em 1922; estruturou, junto a pessoas do porto de Mário de Andrade e Sérgio Millet, dentre outros, o pioneiro Departamento Municipal de Cultura do estado de São Paulo, chefiando a divisão de bibliotecas daquele órgão. Desse tempo e de sua inspiração surgiram a biblioteca circulante, a biblioteca infantil e uma biblioteca ambulante armada num automóvel que, cada dia, estacionava num jardim ou parque de São Paulo.
Fundou o primeiro curso de Biblioteconomia do Brasil, na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, desencadeando todo o desenvolvimento posterior da área, bem como a Associação Paulista de Bibliotecários. Além disso, foi diretor da Biblioteca Nacional, da Biblioteca das Nações Unidas, em Nova Iorque e o primeiro professor a receber o título de emérito da Universidade de Brasília.
Foi um bibliográfo da mais alta competência, tendo compilado e analisado criticamente as mais importantes obras já escritas no Brasil; é também considerado um dos maiores conhecedores de obras radas sobre o Brasil, possuindo a maior coleção particular desse tipo de livros.
Era simples e magnânimo, e tentava, repartir todo aquele conhecimento com quem dele se aproximasse e se interessasse. Declarava, enfaticamente, a necessidade dos bibliotecários não serem apenas técnicos, mas principalmente cultos, pois “a profissão exige um certo lastro de conhecimento para todos aqueles aqueles que trabalham com a cultura e tentam encaminhar outras pessoas”.