Foi no Ceará que pari a última crônica do ano. Praia de Flecheiras, para ser mais exato. Entre uma mergulhada e outra, beberiquei, sem pressa, o romance de Bernardo Carvalho. Leram “Reprodução”[1]? Um homem, referido como “o estudante de chinês”, é retirado da fila de check-in, prestes a embarcar para a China. Durante o interrogatório, o rapaz, num monólogo nervoso, desfia preconceitos contra pretos, gays e ecologistas. Sua justificativa para opinar sobre tudo é patética e disparatada: “Sou um cara hiperinformado. E tenho opinião própria.” Em torno do departamento de polícia vão aparecendo autoritarismo, segregação e ignorância travestida de informação. O estudante desempregado, decepcionadíssimo com o Brasil, aposta suas fichas no mandarim: “Na China James Joyce é best-seller. É! ‘Ulysses’ vendeu oitenta e cinco mil exemplares na China. Quando é que isso ia acontecer aqui?”[2]. Encorajado a delatar os possíveis culpados pelos infortúnios do país, dissemina seu espírito reacionário travestido de saber enciclopédico (viva a Wikipedia!).
Terminei o livro crente de que muita gente porta no bolso sementes da mesma espécie. Suspeito de que ninguém escape. Nem bibliotecário ensimesmado. Brotou, de pronto, um turbilhão de figuras e postagens em minha cabeça. Pensei nos desafios em estabelecer fronteiras de (i)legitimidade entre os discursos virtuais e digitais. Pensei nos critérios de veracidade e embuste de produtores e mídias. Pensei na linguagem indigente e insolente das redes. Pensei no tom simplório e emproado dos internautas ao lidar com entidades complexas. Pensei na virulência dos comentários e nos seus desdobramentos nos corpos e almas ultrajados. Pensei na dificuldade de se distinguir, fora da CDD e da CDU, as pessoas das coisas. Pensei em Pilatos: “Quid est veritas?”[3]
Observei que a pressa é o elemento de maior desassossego no romance. Pressa do sabichão em falar. Pressa em interromper. Pressa em inibir a antítese. Evidência dupla, explicitada na extensão generosa dos parágrafos que nos obriga a lermos de um fôlego só, e num estudante espumoso, que invisibiliza, sem escrúpulos, seu interlocutor. Não há tempo para o outro. Sua paranoia, nascida do turbilhão de informações mal digeridas, é agravada pelo mutismo forçado. O interlocutor, agente de polícia, não age, ferido pela verborragia intransigente. Silêncio homicida.
Ouviram falar da palavra “flecheira”? Trata-se da abertura nos muros da fortaleza sobre o portão de entrada, servindo de posição estratégica aos flecheiros para lançar projéteis sobre os sitiantes. Para mal entendedor, meia palavra não basta: o mutismo do outro é a garantia de perseverança em seus enganos travestidos de verdade única e irrevogável. Desse modo, é a carne fantasmagórica do semelhante que nutre os seus devaneios, fechando-o no castelinho de pedras sujas de sangue. Se o romance tivesse alguma lição, seria essa: o monólogo nos introduz, definitivamente, na barbárie.
Pensei na gente, em nossos antigos e inúmeros devaneios nas baias e redes. Pensei na solidariedade e na truculência. Admiti que a ferocidade tende a ganhar mais likes que a camaradagem. A palavra insana, demente, arrebanha multidões. Rede é armadilha, estratagema, laço, engano, logro, cilada, ardil. Para os amantes do vento, ela é exercício contínuo de tolerância. Lembrei-me do Código de Ética.[4] Suspirei, agradecido. É que sua sombra nos desmotiva a comer as entranhas do próximo. O Código funciona como instrumento catalisador da empatia. Fiquei sabendo que ele sofrerá mudanças. Palmas para o Conselho Federal. O momento me parece adequado para isso: roupa branca, sete ondas. Ano novo.
Tenho as minhas recomendações. Sugeriria, já de início, que na Seção I de nosso Código apareça três elementos: primeiro, a quem ele é dirigido. Obviedade da minha parte? Suspeito que não. Atualmente ele pretende regular “pessoas físicas e jurídicas que exerçam as atividades profissionais em Biblioteconomia” (art. 1º). Bobagem. Uma entidade gestora de acervos bibliográficos não pode ser regulada pelo Código de Ética, mas os bibliotecários que ali atuam sim. Ademais, evitemos expressões genéricas e nebulosas. Por Ranganathan: nada de “profissionais da Biblioteconomia” (art. 2 º, 3º, 12), OK? Somos bibliotecários, e ponto final.
Também proponho que apareça, já nas primeiras linhas, a indispensabilidade do bibliotecário ao país. Questão de fato e de direito, diga-se de passagem. Se assim não o fosse, o exercício profissional não seria objeto de fiscalização por parte do Estado. Uma ramagem abundante nasce deste cepo materializado na seguinte questão: quais são as atividades que são de competência exclusiva do bibliotecário? Embora a Lei no 4084/1962 (art. 6º) aponte para seis competências cardinais, algumas delas, simplesmente, não fazem razão de ser. Uma delas é a docência em Biblioteconomia. Quem me contou? A boa e velha experiência. Muitos professores de Biblioteconomia não são bibliotecários e, não creio que isso represente, necessariamente, um prejuízo para os futuros bacharéis. Poderíamos estabelecer nosso lugar nesta selva selvaggia a partir de duas funções já listadas na mencionada lei: a administração de bibliotecas e equipamentos afins, e as atividades técnicas envolvendo tratamento e disseminação de acervos bibliográficos. A partir de uma síntese das duas, a sentença abaixo pode ser, adequadamente, completada: “O bibliotecário, indispensável para […].”
Sugiro elencar, finalmente, na mesma sentença, os valores que norteiam a nossa atuação. Aqui, enfrentamos um desafio que faria Aristóteles[5] transpirar. Quem se atreveria a arrolar os valores da Biblioteconomia brasileira contemporânea? A justiça poderia ser, certamente, um deles. Mas, a qual modalidade de justiça estaríamos nos reportando? A justiça preservadora da ordem ou a deflagradora do progresso por meio da desordem? Madame Swetchine[6] tem razão: “Os homens invocam a cada passo a justiça, quando a justiça devia fazê-los tremer.” Talvez pudéssemos reduzir o perímetro do terreno movediço procurando alguma pista no Código atual. Lá está registrado, por exemplo, que nossa profissão é, ao mesmo tempo, liberal e humanista (art. 3º, a). Confesso: esse casamento sempre me pareceu arranjado e infeliz. Afinal de contas, nos quatro séculos de liberalismo, onde é que a Biblioteconomia brasileira se situa? Prestaremos reverências ao humanismo de Morus ou de Marx? No rito da formatura, os bibliotecários neófitos jurarão fidelidade ao espírito de Locke ou de Rabelais? Admito: tenho mais dúvidas do que fidúcias. De todo modo, creio que a resposta está no campo ontológico. Digamos uma só palavra em relação ao fim-último do equipamento cultural chamado “biblioteca” e seremos salvos.
E a saga não termina por aqui. Durante a confecção do Código, eu investiria numa linguagem mais positiva, propensa a estimular novos comportamentos. Recordam-se dos Engenheiros? “Eu vejo as placas cortando o horizonte. Elas parecem facas de dois gumes.”[7] O discurso interditório, embora satisfaça uma parcela da grei, costuma acender a centelha da rebelião. De todo modo, em caso de extrema necessidade, recorramos a um discurso proibitivo claro e direto, evitando o triste fenômeno do dispositivo normativo natimorto.
Há tanto mais a ser dito. Nós atendemos usuários ou clientes? É o capital que estabelece as fronteiras linguísticas entre estes sujeitos que se beneficiam de nossos serviços? (art. 7º, caput). E o campo arenoso do discurso: quem cultiva a urbanidade não é, obrigatoriamente, respeitoso (art. 7º, b)? Abaixo a verborragia!
Eita! O que temos escondido, lá no artigo 8º? “O Bibliotecário deve interessar-se pelo bem público e, com tal finalidade, contribuir com seus conhecimentos, capacidade e experiência para melhor servir a coletividade.” Colegas timoratos: arranque essa belezura daí e faça-a pular, pelo menos, cinco casas!
Voltei a lembrar do estudante de mandarim. Xucro, coitado. Se fosse um cara bem informado, esqueceria o chinês e abandonaria, de vez, a flecheira do Face. Opa! Que tal uma seção inteira do Código dedicada à urbanidade? Passou da hora de combatermos os rastros de racismo. Abaixo o uso do verbo “denegrir” (art. 5º, h)! Questão de bom senso para uma profissão que tem a dignidade da pessoa humana como um dos seus fundamentos (art. 3º, a).
Nessa mesma onda de respeito, prestaríamos um serviço a nós mesmos se deixássemos de confundir alhos com bugalhos. “Sexo” e “gênero” não são farinha do mesmo saco (art. 11, a; 12, r). Até os herdeiros do misógino Dewey despatologizaram os transgêneros. Vale acrescentar que já passou da hora de o Código dar nome ao que Oscar Wilde[8] intitulou de “amor que não ousa dizer seu nome. “Gesto simples e poderoso seria incluirmos em uma de suas alíneas a categoria “orientação sexual”. Em tempos de fundamentalismo religioso, tutelar a liberdade religiosa é imprescindível, mas, como ignorar a vulnerabilidade de colegas lésbicas e gays atuando num país recordista em assassinatos da comunidade LGBTI? Só corremos um risco nessa história: voltarmos à fila do check-in, cobiçando as flecheiras das muralhas sangrentas da China.
Coluna Arenas por Cristian Brayner